Personagens Invulneráveis
E a arte de se identificar com a vulnerabilidade dos outros.
Outro dia, me lembrei de uma cena de Austin Powers. No filme, o agente secreto assassina um bandidão aleatório. A seguir, aparece uma bucólica casa de subúrbio dos EUA. A trilha sonora é emotiva. Por telefone, a esposa recebe a notícia da morte do marido. Abalada, ela abraça o filho adotivo, cai em prantos, e completa: “as pessoas nunca pensam como as coisas afetam as famílias dos bandidos”.
Piada seríssima. Mostra que grande parte do entretenimento só funciona porque negamos a humanidade de alguns personagens. Eles são descontextualizados, ignoramos que eles tenham famílias e passado. Personagens Funcionais Vazios (PFV).
Esses são diferentes dos Personagens Não Jogáveis dos videogames, que só cumprem funções mecânicas e repetitivas – o que facilita ignorá-los. PFV são sacos de pancada: têm humanidade até onde interessa, estão ali pra pagar a conta das nossas vinganças narrativas ou descarregos emocionais.
Enfim, o motivo que me fez lembrar da cena de Austin Powers foi o seguinte: Cory Doctorow. Sim, o escritor, ativista, best-seller, inventor do termo “enshittification”, máquina de denúncias dos problemas do mundo digital.
Seus vídeos e podcasts têm uma qualidade quase desumana: Doctorow se lembra das estatísticas mais peludas, fala rapidamente e com uma fluidez impressionante. Se eu fosse dar uma festa só pra homens vulneráveis, hesitaria em convidá-lo. De longe, Cory parece um tanque de guerra.
A não ser no final do ano.
Desde 2012, ele arrasta sua filha, Poesy, pra fazer o que ele chama de Daddy-Daughter podcast. Ele entrevista a menina e os dois cantam uma música de natal. Cory fica absolutamente feliz e ganha um tom exagerado, quase espalhafatoso. Mas, na sua empolgação, faz o melhor pra agradar (ou, pelo menos, não constranger) a filha. Só que, com a chegada da adolescência, a tarefa parece cada vez mais complicada.
Do outro lado do MP3, fico torcendo pra tudo dar certo. Esse é o meu momento de compaixão mais ansiosa do ano. Cai bomba, atiram nesse e naquele, mas eu só quero que Cory consiga agradar a Poesy.
Maravilhas das relações parassociais. Eu tinha esse problema desde antes da Internet: sofria com os gatos de Carlos Heitor Cony (e depois, os de Marc Maron), me empolgava com as aventuras de Contardo Caligaris e por aí vai.
Compaixão seletiva já faz parte da nossa rotina, assim como a desumanização funcional (demonstrada na cena de Austin Powers). Mas também somos bons praticantes de “invulnerabilização”.
O que é isso? A tentativa de apagar todos os rastros de vulnerabilidade. De si e dos outros, que são selecionados conforme o objetivo. Pelo jeito, homens e mulheres processam isso de formas diferentes1.
De qualquer forma, cedo ou tarde, o reboco da casa racha. Em alguns casos, nem chegamos a completá-lo. E aí surgem os puxadinhos, com os tijolos expostos, mostrando os indícios da construção improvisada. Quer dizer, da invulnerabilização incompleta ou ineficaz.
De qualquer forma, já me sinto um pouco mais humano só de imaginar o eloquentíssimo Cory Doctorow chegando em casa, hesitando e escolhendo as palavras pra não entediar a filha adolescente. Me dá um pouco mais de energia pra trabalhar. Avante, Cory!
Nem sou muito fã do Idles, mas achei esse vídeo interessante.


