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Finalmente consegui assistir a Aftersun, um dos filmes mais elogiados de 2022. Estreando na direção, a escocesa Charlotte Wells causou um fenômeno interessante: uma onda de críticos e influenciadores repensando as memórias de seus pais. No meu caso, a bola desviou e foi parar em minha mãe.
Mas, espera aí. Deixe-me tentar organizar esse texto.
Aftersun é uma espécie de ensaio sobre a memória. Uma mulher de cerca de 30 anos revisita fragmentos das férias que passou, aos 11, com seu pai depressivo, num hotel meia-boca na Turquia, no começo dos anos 2000.
Para ajudar a reconstruir a narrativa desses dias simultaneamente míticos, nostálgicos e traumáticos, ela conta com gravações feitas em câmeras amadoras da época. Vamos começar por aí.
O olho de vidro
É interessante notar como a diretora foi cuidadosa em retratar que, no começo dos anos 2000, as câmeras ainda nos eram estranhas, desconfortáveis… e fascinantes.
Tanto pai quanto filha demonstram tanto repulsa quanto atração a esses objetos que, poucos anos depois, se tornariam onipresentes. Ainda assim, é de se questionar se realmente nos acostumamos a eles.
Funciona um pouco como o mito dos primeiros contatos dos indígenas com espelhos. De repente, aparece um “eu-outro” bidimensional, numa tela. Está ali, mas não está. Não sou aquilo. Ainda assim, me acostumei a achar que sou. Essa ilusão causa um efeito de sucção de atenção.
Ainda hoje, quando é praticamente impossível fugir das nossas imagens num vidro, nossas “almas” continuam a ser sugadas por lentes. Nos vemos obrigados a parar e checar o que está acontecendo. Tentamos organizar, filtrar, melhorar, esconder defeitos, manipular o que aparece naquilo. Não se pode simplesmente ignorar a imagem.
Sem começo e sem fim
O filme é uma coleção de fragmentos. Um tanto como sonho, memória e delírio. As cenas sempre começam um pouco depois do que seria um “começo” tradicional e terminam bem antes do que seria um fim.
Assim, a relação de tensão e alívio do espectador migra para outro nível, digamos até mais participativo. Por exemplo, numa das cenas, há indícios de que o pai talvez tente se suicidar. E, então, há um corte brusco. Não vemos o que acontece. Só relaxamos alguns minutos depois, quando o homem aparece capotado na cama.
Minha tese é a de que Aftersun reflete o tipo de storytelling promovido pelo trauma: o tempo circular. Alguma coisa que supostamente aconteceu e precisa ser recontada, ruminada, investigada periodicamente. Um momento que insiste em não passar.
Sem infância
Percebendo o sofrimento calado (mas muito visível) do pai, a protagonista do filme, Sophie, precisa renunciar à própria infância. Vira a cuidadora do adulto.
Sophie é o entretenimento. É a companhia. Representa a “compreensão”, a estabilidade, a leveza. Não pode expressar seus sentimentos. A prioridade é manter a saúde mental do pai.
Não sei como alguém pode chamar essas coisas de “inocência da criança”. A compreensão de Sophie é extremamente refinada. E prática. Intuitivamente, ela sabe que não adianta falar, é preciso agir.
Apenas quando adulta é que precisa se engajar em processos cíclicos e retroativos de explicação. O que, afinal, resulta no próprio filme, essas férias obsessivas, que nunca terminaram, propriamente. No calor da hora, Sophie foi bastante eficiente. Mas isso teve um preço.
Como se sabe, ficar preso ao passado parece menos assustador do que viver no presente. Ainda que isso leve à constante tentativa de colar cacos esfarelantes de memória, a requentar a mesma narrativa.
Enfim, quem não tem um Aftersun para chamar de seu?
O sol que nunca se põe
Que texto lindo!
Vc conseguiu me fazer entender porque amei tanto o filme: ele é uma coleção de fragmentos, minha grande e perene obsessão. Que texto lindo, Edu.