Não aguento mais consumir cultura

Será que consumir entretenimento pode virar o trabalho do futuro?

Não aguento mais consumir cultura

“O robô vai ouvir o disco novo da Taylor Swift. Hoje eu só quero limpar uma calha!”

Alguns dados impressionantes sobre o estado da cultura na nossa época:

  • Em 2022, foram publicadas 100 milhões de músicas no Spotify. Uma média de 49 mil por dia.
  • Segundo a UNESCO, 2,2 milhões de livros são lançados anualmente.
  • Existem cerca de 2 milhões de podcasts no mundo. Com 48 milhões de episódios.

Isso sem contar posts em redes sociais, artigos em jornais, etc.

Pelo jeito, não falta conteúdo neste planeta. Mas está começando a faltar gente e tempo pra sorver toda essa sopa primordial.

Cultura é pra robôs?

Ao longo dos anos, a abundância de conteúdo nos “forçou” a delegar a seleção e o processamento de conteúdo pras máquinas. Ou seja, pra algoritmos.

Assim, aos poucos, a cultura está virando coisa pra robôs.

Produzimos com a ajuda da IA, consumimos usando aplicativos e também já pedimos pros computadores resumir, organizar textos, imagens e ideias.

O que me lembra um pouco da série Star Wars, na qual Darth Vader vai ganhando poderes, mas se torna um robô.

Luke Skywalker também se vê preocupado em perder sua identidade, quando precisa substituir um punho por uma prótese. (Imagine se o corte tivesse sido mais pra baixo.)

Quanto vale o show?

Enfim, nesta semana, o Spotify anunciou que vai usar um modelo parecido com o do YouTube pra monetizar músicas: se a artista não atingir um certo número de “plays”, não terá direito ao maná, pão e vinho.

Recentemente, o Bandcamp também foi vendido pra uma companhia gerenciadora de copyrights.

Como diria, Kurt Vonnegut, “so it goes”.

Outro fenômeno interessante é a popularização de empresas como a Reservoir Media. Elas compram e gerenciam catálogos de artistas consagrados. É um investimento em propriedade intelectual.

A ideia é aumentar o potencial de lucro de cada música, ao longo do tempo. Os departamentos de marketing dessas companhias contratam influenciadores, procuram parcerias com marcas, etc. e tal, pra bombar e rebombar cada faixa.

Conheci melhor esse fenômeno numa entrevista da CEO da Reservoir, Golnar Khosrowshahi, no podcast Decoder.

Entretenimento é coisa séria

Coincidentemente, tinha acabado de ouvir sobre o livro do jornalista Walt Hickey, You Are What You Watch: How Movies and TV Affect Everything.

Hickey fala sobre quais são os impactos físicos e psicológicos de filmes populares. Medidos em laboratório. Não é conversa de filósofos tido como elitistas.

E o que ele achou? Estresse. Você pode até achar que está se divertindo. Mas, dependendo do que consome, seu cérebro rodará no modo lutar ou fugir. E enviará químicas não muito saudáveis pro corpo.

De qualquer forma, a entrevista de Hickey gira em torno de outra tese importante: não podemos ignorar o poder político e sociológico da cultura pop.

Não dá pra esquecer que alguns dos homens mais ricos e poderosos do planeta são extremamente influenciados pelo cinema e pelo entretenimento do final do século 20.

Resumindo, aí está uma verdade inflopável: entretenimento é muito mais que entretenimento.

Profissão: consumir cultura

Tá. Mas onde quero chegar?

No seguinte: entretenimento virou um dos maiores setores da economia. E qual é o maior obstáculo que a indústria cultural terá que enfrentar pra se expandir, tanto na produção quanto no consumo?

Tempo.

As pessoas precisam disso tanto pra criar quanto pra consumir.

Mas elas também precisam trabalhar. Vendendo seu tempo e energia.

Portanto, num cenário como esse, imagino que três coisas poderiam acontecer:

  1. As máquinas produziriam (seguindo padrões consagrados) e já consumiriam o material. Humanos passariam pra um nível mais meta, financiando os curadores-consumidores-Darth Vaders.
  2. Humanos trabalhariam cada vez menos. E sugariam quantidades massivas de entretenimento em seu “tempo livre”. O que é uma tendência já em andamento desde os anos 1980, nos países ricos.
  3. O entretenimento se transformaria (ainda mais) em trabalho. Pagaríamos quem produz, claro, mas também quem consome. Por exemplo, em vez de comprar livros, venderíamos nosso tempo de leitura.

E toda economia funcionaria em níveis cada vez mais abstratos, via capital financeiro.

Falando assim, imagino que provocaria reações emocionais: “que horror, esses capitalistas querem sequestrar minha cultura”. Justificável. Mas não deve resolver o problema.

O que eu realmente quero me perguntar é o seguinte: o que iria acontecer se o consumo de cultura virasse mesmo trabalho, pra todo mundo, com expediente, salário e tal?

O que criaríamos pra escapar do entretenimento?

Uma volta à produção amadora de arte? Contar mitos, histórias pra poucas pessoas, tocar música ao vivo pra uma pequena comunidade?

Ou nem isso? Voltaríamos a sonhar com trabalhos manuais?

Não sei.

Alguém aí pode evocar o fantasma do Philip K. Dick e perguntar?