Internalizei o algoritmo
Quando o medo é tão forte que você age como um robô.
Tinha me esquecido de como é fácil deixar de dar opiniões na Internet. Fui viver e, quando percebi, passaram-se 3 meses sem alimentar meu avatar. Ferida narcísica: o universo nem acabou.
É claro, as opiniões continuaram a proliferar. Em especial, as criadas pela Inteligência Artificial. E, então, a produção e o consumo de informação on-line foi migrando pra outra espécie, da humana pra digital. Ou seja, computadores geram o conteúdo e já o consomem.
Mas esse processo deixa rastros nos humanos: aprendemos a produzir como máquinas, para máquinas e reagir como elas. Com isso, criamos novos patamares de segurança e identidade: sabemos quem somos, como nos comportar, onde nos encaixar e quais são os nossos inimigos. Quem e o que seríamos se não tivéssemos que sustentar nossos dramas on-line?
Não precisamos mais de empresas de tecnologia delimitando nossa criatividade e desejos. Já internalizamos os algoritmos.
Por exemplo, outro dia, num restaurante, eu estava prestando atenção na conversa alheia. Tudo pela ciência, claro.
Uma mulher de uns 30 e poucos anos tinha acabado de chegar de um fim de semana quente com um namorado, vivido numa cidade turística. Depois de sessões de muito sexo, eles pararam pra "definir" se ficariam juntos.
E aí o algorítimo mostrou a cara: "nós temos idades muito diferentes (segundo ela, 5 anos), planejamos ter filhos em épocas distintas, moramos longe um do outro, etc., etc."
Eu ouvia e, praticamente, sentia o avatar se formar, o perfil aparecer num aplicativo. Era a lógica algorítmica, baseada em demografia, tendências comportamentais, geolocalização, entre outros itens.
Da minha mesa, eu só queria pular e gritar: "mas as coisas mudam! As coisas mudam!" Basta um anticoncepcional falhar, uma demissão e os planos mais racionais se dissolvem num segundo.
Os algorítimos são bons pra classificar e descobrir padrões, mas ingênuos pra perceber a descontinuidade, os acidentes, as turbulências da vida.
Agora, pense numa pessoa que nasceu nos anos 90. Por onde quer que ela olhe, verá uma tendência a midializar e algoritimizar todos os setores da vida. Essa é a sua realidade: performance, perfil e análise estatística.
Ela tentará evitar o risco ao máximo. Ou apenas se arriscará em frente das câmeras, de um jeito ornamental, como quem produz algum tipo de entretenimento.
O problema é que o "risco arriscado", aquele que ameaça o ego e o avatar (sem câmeras por perto pra criar uma nova identidade e fortalecer uma marca), o risco é o que produz resiliência.
A lógica algorítmica internalizada cria mais ingenuidade. Porque ela se apega a uma fotografia de um momento. Porém, mudamos o tempo todo, incluindo nossas projeções de futuro e interpretações do passado. Fora que sempre há um fator desconhecido ou ignorado jogando areia nas nossas engrenagens.
Que algoritmo conseguiria lidar com a multiplicidade da vida? Um que se autocorrigisse constantemente. Um que estivesse sempre à beira da falência. Ou seja: uma mente humana.
Então, preciso admitir: dar opiniões em público durante esse processo pode facilitar a autocorreção. Isso se resistirmos à tentação de transformar essas opiniões em marca, perfil e identidade.
Mas não é tão simples. É como se duas forças estivessem concorrendo constantemente:
- De um lado, a linguagem que quer congelar a pessoa, deixá-la rígida, obedecendo a uma lógica algorítmica.
- De outro, a linguagem que busca sua própria dissolução, sua fluidez. Uma produz identidades bélicas e comerciais. Outra, estratégicas e provisórias.
Como um bom GenXer, homem e romântico enrustido, eu só queria dizer pra aquela mulher de 30 e poucos anos: afogue esse algoritmo num orgasmo total. Mas, felizmente, ainda tenho alguma lucidez pra ficar calado. Dar opiniões pode ser um ato de humildade. Mas não ter opiniões pode ser um ato de compaixão.