É ruim. Mas é bom
Provavelmente, o contentamento é a coisa mais radical que existe.
Olhe pros lados: praticamente todos os fenômenos culturais (da economia a instituições como o casamento), estão baseados no descontentamento. Uns pra prevenir que ele ocorra. Outros pra remediar a sua presença. Outros, ainda, pra incitá-lo.
O descontentamento pode começar pequeno, com uma vaga sensação de que algo não funciona como esperado. Mas pode se tornar um Godzilla ideológico, como o aceleracionismo (“aja rápido, quebre as coisas”).
Passamos toda a Modernidade mimando o descontentamento. Textos e mais textos, das artes à política, tentavam associá-lo automaticamente com a ideia de progresso. Portanto, melhoria e evolução.
Provavelmente, nunca esta civilização foi tão otimista, ainda que usando o discurso do pessimismo (“Tudo está ruim. Mas, se eu mudar isso, aí os anjos descerão na Terra, com suas trombetas”).
Só os conservadores e reacionários podiam se dar ao luxo de se declarar saciados por alguns momentos, no meio do jogo. Os descolados tinham que repetir “I can’t get no, satisfaction”. Tinham que adiar o prazer. Mesmo quando ocasionalmente estivessem satisfeitos.
Santificamos o descontentamento. Ele virou um valor absoluto e não uma ferramenta ocasional, de valor tático.
Espalhamos micro fragmentos e sabores de insatisfação por toda a cultura. Até chegar ao tal Capitalismo Tardio, que nos mantém insatisfeitos o tempo todo, doom scrolling, comfort consuming e mapeando nossos movimentos pra criar mais descontentamento e novas promessas de satisfação.
Tanto que, hoje, até conseguimos reconhecer o ponto mais íntimo, mais atômico da insatisfação: a ansiedade. Queremos mudar, mexer em algo, migrar e procurar uma saída pra um problema que, talvez, ainda nem tenha se manifestado. É uma sensação contínua de desconforto.
Esse mal-estar da civilização é um tanto diferente do diagnosticado por Sigmund Freud. Não é que, pra viver em sociedade, você precisa apenas renunciar aos desejos. Você é constantemente incentivado a desejar mais. Ou melhor: a manter-se nesse sentimento vago e difuso de “saco cheio, poderia ser melhor”.
Mas por que o contentamento é que é radical? Não seria o descontentamento? Não, porque esse já faz parte do nosso sistema operacional. Hoje em dia, o contentamento é uma ferramenta basicamente subversiva. “Eu não preciso de mais. Reconheço estas qualidades em mim e nos outros. Isso é o suficiente”. Quem diria, esse é um hábito que precisa ser cultivado.
Aqui, o risco seria transformar a ideia de contentamento em outra crença absoluta, em vez de uma ferramenta.
Não que o Capitalismo vá deixar isso acontecer, claro. É mais provável que continuem a surgir versões consumíveis de contentamento: contentment washing, na forma de exercícios de gratidão vazios, produtos de autocuidado, sem uma visão mais ampla de comunidade e de compaixão.
De qualquer forma, é fundamental perceber que nem satisfação, nem insatisfação garantem controle da realidade. Estamos condenados a testar hipóteses. E sempre descobrir novos territórios da nossa ignorância.
Se não temos como chegar ao contentamento perfeito, também não podemos continuar cultuando o descontentamento.
O progresso contém regresso. E vice-versa. O upgrade traz novos defeitos. Defeitos podem ser funcionalidades, a partir de outro ponto de vista. Nem reacionarismo, nem conservacionismo, nem futurismo. Prática. Ou, como diriam alguns autores, praxis.
Quando temos apego ao descontentamento (às narrativas, aos personagens que criamos), não temos acesso ao radicalismo do contentamento. Mantemos a porta fechada, só pra reclamar da solidão.