Descansando do descanso
Quando o entretenimento vira um fardo.
Desde os anos 1980, está cada vez mais claro que a cultura mainstream está baseada na compulsão. Escrolar o dia todo, FOMO, comprar por impulso, reagir rapidamente a conteúdo nas redes sociais, usar fast fashion, comer fast food, seguir tendências que surgem e dissolvem diariamente.
E o que fazer pra sair disso? Em especial porque estamos extremamente habituados e dependentes desse vórtex cultural. É difícil até de identificar outras lógicas, de imaginar alternativas.
É claro que são necessárias mudanças sociais, econômicas e políticas pra podermos realmente superar a cultura compulsiva. Mas ela também tem um nível psicológico que pode ser hackeado individualmente.
Disciplinas como economia comportamental e psicologia cognitiva são o combustível das atuais empresas de mídia e tecnologia. Muitos desses saberes são desenvolvidos em universidades públicas, com dinheiro de impostos. Temos acesso praticamente às mesmas pesquisas que as empresas usam pra aprender a explorar nossos gatilhos e pontos fracos.
Portanto, as escolas poderiam e deveriam ensinar a identificar padrões obscuros de interfaces e atividades comerciais antiéticas. Assim como se ensina a lidar com germes e outras praticalidades da vida.
Mas, obviamente, não dá pra esperar até que os governos e instituições educacionais entendam que as pessoas estão nascendo e entrando na cultura compulsiva sem qualquer preparação psicológica.
O mais forte hacking individual contra a compulsividade é o hábito de investigar nossos gatilhos. Quando é que damos o salto e nos deixamos engolir pelo vórtex cultural? Cada pessoa tem uma série de pequenos momentos portais. Um ambiente, um estado emocional, uma palavra ou algum detalhe que dispara todo um processo compulsivo.
Mais do que tentar se controlar prematuramente, é preciso desenvolver uma atitude quase científica de mapear fragilidades. E desconfiar de certas narrativas que só ampliam o poder dos gatilhos.
Por exemplo, no passado, era comum a pessoa chegar em casa, cansada, depois do trabalho, e ligar a TV. De alguma forma, ela se sentia “merecedora” de um momento de entretenimento. Hoje em dia, essa necessidade de recompensa migrou pra a cada 10, 15 minutos do dia.
Essa narrativa do direito ao entretenimento é tão comum que raramente é questionada. Mas, afinal, quem é que garante que entretenimento realmente produz descanso e relaxamento? Alguns autores argumentam até que certos conteúdos aumentam os níveis de cortisol e estresse.
A crença na salvação pelo entretenimento foi construída, ao longo do século 20, pra fazer funcionar a Indústria Cultural. Isso nunca foi segredo. A estratégia era colonizar nosso tempo livre e nos fazer trabalhar fora do horário do expediente.
Trabalhar como consumidor de conteúdo e, hoje, também como produtor (além de treinar Inteligência Artificial). O próprio consumo virou um trabalho. No mínimo, gastamos tempo, atenção e produzimos metadados, usados pra publicidade.
Desde o pós Segunda Guerra Mundial, fomos treinados a acreditar nos poderes curativos do entretenimento. Fomos escrutinados, testados e investigados pra descobrir o que capta e mantém nossa atenção, além de criar comportamentos compulsivos.
Aos poucos, instalamos a monocultura do prazer. Eliminamos a diversidade do lazer. E nos dedicamos a um estilo cada vez mais específico de “diversão”: mídia e entretenimento.
Assim, chegamos a esse ponto triste de ter que investigar nossos gatilhos de compulsividade. Se não os estudamos, é certo que agências e companhias já o fazem por nós. E se orgulham disso, vendendo sua expertise como um diferencial de mercado.
É importante que nós também saibamos o que nos suga pra mais 2 horas de YouTube ou TikTok. O que nos leva a postar mais um comentário inútil em redes sociais. Ou a ver mais um filme que nem nos interessa tanto.
No mínimo, precisamos conhecer os processos que nos sugam até o bagaço e nos jogam na cama, sonhando com um dia de descanso. Do descanso.