A morte da conversa fiada

Mais uma vítima do aquecimento global.

Sou fascinado por conversa fiada, essa comunicação vaga que se pratica nos elevadores, nos corredores das empresas, etc. É uma verdadeira arte. Não é pra qualquer um, a prática de sustentar um diálogo só pra quebrar o gelo, sem ter nada de efetivo a dizer.

O nome técnico pra isso é conversa phatica (CP). É um dos nossos maiores reguladores sociais.

Muitas vezes, sequer usa palavras. Basta um grunhido, um som ou uma expressão que traga conforto e aceitação num grupo. Mais ou menos como naquela cena do filme Pierrot Le Fou, em que Godard sacaneia os militares dos EUA: "Sure! Yeah!" Não precisa mais que isso.

Ainda assim, já faz tempo que venho argumentando que a Internet causou uma mutação na CP. Hoje, ela está cada vez mais nerd, pseudo informada, cheia de anedotas e dados "científicos" desconexos que coletamos nas redes sociais.

Você dá um simples pigarro no elevador e pode acabar levando um diagnóstico de tuberculose. Além de um sermão sobre técnicas pra curá-la. Pule na água gelada, tome uma colher de suor de égua virgem. Vai dar certo, vi no YouTube.

Há uma inundação de médicos e terapeutas nas ruas. Tanto que as pessoas deveriam usar o cartão do SUS como principal documento de identidade. "Sou programador, mas cardiologista e nutricionista por hobbie".

Isso fica ainda mais claro na área de saúde mental:

"Desculpe-me. Furei a fila. Não percebi que você já estava ali. Sou autista e tenho déficit de atenção".

"Tudo bem. Sou depressivo e estava concentrado nos meus pensamentos obsessivos e intrusivos".

Tudo sem nem nunca ter passado sequer na frente de um consultório psiquiátrico.

Em certos círculos sociais, encontros amorosos parecem convenções de sociologia.

"Você me ama?"

"Olha, acho que estou no meio de uma experiência temporária de poliamor cisgênero".

"Tá. Mas você paga a conta do restaurante, certo?"

"Não. Isso é pura mentalidade colonialista patriarcal".

Enfim.

Mas eu queria dizer outra coisa. É que, nas últimas semanas, a CP levou outro golpe fatal.

Veja bem: falar sobre o tempo era o píncaro, o cume, a epítome da conversa fiada. Agora, é um assunto mais trágico do que a Ilíada.

Outro dia, eu participava de uma reunião via Zoom. E as pessoas estavam desesperadas por uma CP gostozinha e crocante. Aí alguém se saiu com o tradicional comentário metereológico.

Num dos retângulos da tela, estava uma mulher que vive na Chéquia. Sua cidade tinha acabado de enfrentar uma enchente bíblica.

Quando chegou minha vez, tive que dizer que estive no centro de São Paulo, quando a cidade foi classificada como o lugar mais quente e irrespirável do mundo. Tive enxaqueca pelo resto daquele dia.

Em dois segundos, destruiu-se aquele sentimento inclusivo, familiar e neutro da conversa fiada. Parecia que tínhamos acabado de ver um filme do Tarkovski, ou do Béla Tarr. Todo mundo pensativo, cabisbaixo, gelado.

Foi aí que me dei conta de mais uma vítima do aquecimento global: a conversa fiada. Você vê? Não podemos garantir nem mesmo isso.

E como será a CP do futuro? Será delegada pra IA? Ou teremos que migrar pra algo menos discursivo e mais corporal?

Sugestão: vamos adotar as técnicas dos cachorros, que se comunicam cheirando as orelhas e os rabos uns dos outros. Imagine como seria isso num elevador. Todo mundo fuçando cangotes e fiofós pra relaxar das tensões sociais.

Ah, a evolução! Sempre evoluindo.