Se não é produto, não existe

Porque não confiamos em demos do Google. Ou em danças Maia.

Se não é produto, não existe

No final dos anos 1990, trabalhei no Memorial da América Latina. Uma das minhas funções era contar parte da história da invasão europeia, por meio de 6 painéis de 18 metros de altura. Além disso, sou antropólogo e estudei algo sobre povos pré-colombianos. Mas só hoje tive a oportunidade de ver um ritual Maia de perto, na cidade de Mérida, no México.

Por um lado, a experiência foi um tanto decepcionante. É que ela veio sem o contexto cultural, que é o que dá força aos rituais e atividades que chamamos de “religiosas”. Fomos levados a entender tudo como apenas uma dança. Assim, perdemos o poder psicológico e social daqueles movimentos e sons.

Enquanto eu assistia, não conseguia parar de pensar na quantidade de saberes, sabores e experiências perdemos ao longo dos anos.

Reduzimos nossa percepção, ao enfatizar cada vez mais a parte discursiva do cérebro. Ficar ali, parado, experimentando a situação, parece algo estranho. Experimentar cheiros, sonoridades, sensações táteis e “espirituais” é coisa de hippie ou de crédulo.

A menos que isso venha empacotado por franquias, personagens, efeitos especiais e referências ao universo pop. CCXP é aceitável, um festival leigo. Já saída de santo, dança Maia, iniciação budista, tudo isso é coisa de religiosos. Pagar por autógrafo é legal. Pagar por bênção é ridículo.

O ritual Maia que vi não funcionaria em telas. Definitivamente, era preciso estar ali, sentindo o medo quando “dançarinos” pintados de azul praticamente se jogavam em cima da plateia, gritando sons agudos e botando as línguas pra fora.

Houve quem comparasse os dançarinos aos avatares de James Cameron. A cópia é mais famosa que o original. Claro: os avatares funcionam num universo que conhecemos bem, o da midialização da vida.

Só toleramos uma cultura extremamente diferente quando ela está numa tela, seguindo narrativas que reforçam nossos próprios valores e costumes. Avatar só é interessante na medida que traz um sabor exótico à velha narrativa de ação. Renova nosso interesse por algum tipo de consumo.

Uma coisa parecida vem acontecendo com o surgimento da Inteligência Artificial. Ela é uma nova cultura que está se desenvolvendo em frente aos nossos olhos. Mas não podemos, simplesmente, entender o que está surgindo ali. Temos que colocá-la na roda da mídia e do consumo.

As pesquisas de IA viviam, basicamente, num universo acadêmico. Mas empresas como o Google e OpenAI precisam forçar uma mudança de narrativa. Ou é mercado, ou nada. A IA precisa falar a língua da mídia, do capitalismo e do marketing.

Por isso, o Google teve que “falsificar” seu demo do Gemini. Se não o fizesse, as pessoas sequer entenderiam “pra que serve” a IA. Se ela não é produto, se não traz mais conveniência, se não entretém, não serve pra nada.

É mais ou menos o que acontece com a atual “dança” Maia. Ela também precisa ser produto e entretenimento. Não pode ser levada a sério.

Assim, os Maias acabam também precisando, de alguma forma, “falsificar” seus demos públicos. Não tem outro jeito, já que os rituais não foram originalmente concebidos pra virar mídia ou espetáculo.

O demo recente do Gemini, o novo modelo de IA do Google, foi considerado fake e manipulativo. Mas foi o contrário: revelou a mais pura verdade. A mídia e o marketing são discursos que têm a falsidade e a manipulação como métodos centrais. Portanto, o problema com o demo é que ele foi verdadeiro demais: expôs essas contradições internas.

As empresas estão desesperadas pra transformar a IA em produto. Não dá mais pra pesquisar, apurar, aceitar novas lógicas. É preciso forçar um progresso, acelerar o desenvolvimento e “entregar”.

Da dança Maia até o Gemini, é a mesma coisa. Só entendemos fenômenos que se encaixam nessa lógica de mídia, conveniência e entretenimento. Se não se encaixa, é preciso fingir.