Presos num Silo
A sci-fi passa por uma crise de imaginação?
Cena da série Silo, da Apple TV.
Nível de preguiça de hoje: ▓▓▓▓▓▓▓▓▓▓ 96%.
Vamos lá.
De vez em quando, sou pego pela vontade de assistir a seriados sci-fi. Desta vez, tentei Silo, da Apple TV. Resultado: gostei. Só que não.
Vamos à ficha técnica:
Gênero superficial: distopia.
Tipo de distopia: pós-catástrofe climática.
Gênero verdadeiro: história policial, estilo true crime e conspiração.
Clima geral: mais pra mistério do que violência.
Humor: 60% dark, 40% fofo.
Nível de mindfuck: 40%.
Estilo de tecnologia: retrô, industrial.
Cores predominantes: marrom, bege, cinza.
Trilha sonora: eficiente, mas no nível de passar despercebida.
Nível de cortisol: alto, muitas cenas indutoras de ansiedade.
Nível de diversidade: médio.
Mulher protagonista (branca, magra e loira).
Vários personagens-chave pretos, poucos asiáticos.
Nenhuma menção à diversidade sexual. Um amor romântico hétero guia o desenvolvimento da narrativa.
História
Aparentemente, o planeta passou por uma catástrofe ecológica e o ar ficou tóxico. Os sobreviventes vivem trancados, em comunidade, num silo de concreto com 144 andares e duas enormes escadas em espiral no meio.
Nos andares mais baixos, estão os trabalhadores braçais. Nos mais altos, os de escritório, com apartamentos melhores. Todas as pessoas são controladas por um rígido sistema de vigilância.
E aqui é que a série fica interessante: não há uma segurança imperial, cheia de armas, com repressão violenta ou entorpecimento via entretenimento. Tudo funciona por meio do comunitarismo, do carisma das lideranças e do desejo de proteger uns aos outros de um mundo ameaçador. Os condôminos são chapas do delegado.
A sociedade do Silo tem muitos rituais de celebração, festas regulares e várias maneiras de azeitar o sentimento de se estar numa cidade do interior. E a série dá a entender que esse confinamento funciona há cerca de 2 séculos, pelo menos.
Silo quase é uma boa reflexão sobre como funciona viver em comunidade. E essa não é uma experiência muito familiar pra quem mora em cidades grandes. Nem mesmo em pequenas, mas de onde é fácil escapar, de vez em quando.
Vida em comunidade é uma mistura de pressão dos pares, certa religiosidade, amor e apoio do grupo, saco cheio de ver as mesmas caras e uma alternância entre claustrofobia moderada e conforto. Nos primeiros capítulos, Silo até explora bem esse universo.
Afinal, qual é o problema de Silo?
A opção por contar uma história de mistério e conspiração. É que existem evidências de que o planeta estaria muito bem, obrigado. Na verdade, as pessoas do Silo seriam mantidas em cativeiro, por algum motivo oculto. Tudo o que elas conhecem seria uma grande mentira. (Mas nada a ver com o clássico Underground, de Emir Kusturica.)
A protagonista descobre certas incoerências do discurso oficial do Silo. A partir daí, começam os clichês que, supostamente, seguram audiência.
Motivada por um amor romântico, a protagonista tenta descobrir “a verdade”. E, então, o sistema de vigilância do Silo se mostra cada vez mais tenso e violento. É quando a série revela seu verdadeiro gênero: policial, quase true crime. Sci-fi vira um pretexto.
Imaginação limitada
Parte da sci-fi contemporânea (na TV e cinema) tem uma dificuldade muito grande de imaginar outros sistemas políticos. Boa parte dela acaba virando uma casca pra contar histórias de impérios versus rebeldes. Nossas cabeças parecem ter sido possuídas pelo paradigma colonialista. Isso se expressa no entretenimento. E na repetição contínua dos mesmos mitos.
É como se só houvesse esperança pras séries de sci-fi se elas fossem um disfarce pra true crime e revelação de conspirações. Que eu me lembre, apenas Station Eleven consegue fugir um pouco disso.
Silo poderia ser um filme do velho e bom Bruce Willis. Ou um novo Expresso do Amanhã (que já é um pouco melhor do que o filme Snowpiercer).
Quando pensamos em construção de mundo, de modo geral, imaginamos cenários elaborados em computação gráfica ou bons figurinos. Mas que sistemas políticos conseguimos imaginar, hoje em dia? Que outros modelos civilizatórios evitamos explorar?
Por que temos tanta dificuldade de pensar uma sci-fi baseada em sociedades sobrevivendo por meio de colaboração? Por que só conseguimos acreditar que haja entretenimento em conspiração e true crime?
Contém spoiler
O final da temporada parece ainda um pouco mais cínico.
A protagonista é expulsa do Silo. Descobre que a ideia de liberdade também era uma mentira, uma animação de computador. Teria sido plantada pra descobrir rebeldes e potenciais perigos ao Silo? De qualquer forma, o planeta está mesmo devastado.
Quando a protagonista olha pra trás, percebe haver muitos outros silos na região. Se o dela hospedava 10 mil pessoas, imagine o resto. Parece que a heroína quase entende e justifica a repressão que recebeu no Silo. Teria se arrependido da rebeldia?
Esse tipo de conteúdo seria uma pré-justificativa pros bunkers que alguns bilionários estão construindo pra se preparar pra uma possível crise?
Não é de se espantar que haja tanta extrema-direita e neonazismo hoje em dia. Se, de alguma forma, o entretenimento reflete a sociedade, ele mostra uma crise de imaginação, como diria Mark Fischer. Não conseguimos enxergar meios termos e alternativas. É como se estivéssemos presos num silo mental.