Perdido na cidade
Graphic novel argentina Cidade é uma metáfora pra Internet contemporânea.
Tenho uns quatro ou cinco pesadelos que se revezam ocasionalmente. Num, estou perdido na cidade. Tento decifrar a malha de transporte público pra voltar pra casa, sem sucesso. Por aí se vê como meus sonhos são obsoletos. Ou melhor, vintage, pra usar uma linguagem mais positiva. Não há Google Maps ou celulares no meu inconsciente.
De qualquer forma, acaba que dois quadrinistas argentinos tiveram um sonho semelhante, que se materializou na graphic novel Cidade. O desenhista é Juan Giménez, do clássico A Casta dos Metabarões. Ricardo Barreiro é o roteirista, que já trabalhou com autores como Enrique Breccia.
Cidade segue o gênero lostcore, que muita gente conhece do desenho A Caverna do Dragão e do seriado Lost (pra ficar em exemplos populares). Sem muitas explicações, uma pessoa se perde num lugar surreal. E se junta a outras pra buscar uma improvável saída.
É o caso do publicitário Jean. Depois de brigar com a namorada, ele caminha pra casa e, de repente, percebe-se numa cidade infinita e desconhecida. Desafios estranhos surgem a cada esquina.
Jean encontra Karen, uma ex-trabalhadora do sexo que está presa na cidade há mais de 5 anos. A partir daí, descobre que é apenas mais um dos perdidos, conhecidos como “náufragos”.
Seguem-se capítulos curtos, nos quais Giménez e Barreiro misturam referências literárias, metalinguagem e alguma pancadaria pra aumentar a sensação de absurdo e tensão.
Os dois náufragos encontram um músico que tem uma relação de amor e ódio com suas fãs, milhares de ratazanas. Um supermercado assassino. Uma fila de caminhões, que aparece do nada e atropela tudo à frente. Um metrô que causa alucinações no estilo Solaris. Uma seita de fanáticos religiosos. Um dilúvio. Um parque que engole os visitantes. Um bairro perfeito, mas condenado. E por aí vai.
Cidade daria um bom filme, na linha de Cidade das Sombras, de 1998. Ou até O Cubo, da mesma época.
Quem não se identifica com essa metáfora, estar perdido num ambiente estranho, com regras malucas e sem ter certeza de que haja uma saída? Basicamente, chamam isso de vida.
As expectativas de final é que variam: os otimistas materialistas (que acham que qualquer sofrimento acaba com a morte) e os outros, que acreditam em algo após à morte (seja pior, melhor ou semelhante).
Cidade também explora um pouco essa tensão, resolvendo tudo num clima agridoce. Claro, não é um texto de Jorge Luis Borges, mas vale a pena.
Não citei o quadrinho aqui pra bancar o esnobe literário. É que me ocorreu que a Internet virou essa cidade infinita, esse “lugar” surreal, do qual não vemos muita saída. Ainda que muitos de nós circulemos num loop entre apenas alguns sites, vagamos como os náufragos de Cidade.
Como os personagens do quadrinho, navegamos, desconfiados, entre promessas e decepções, sem saber se procuramos efetivamente uma saída ou apenas queremos continuar ali, sem pensar muito. De qualquer forma, quanto mais você se aprofunda nos caminhos, mais bifurcações encontra, mais perdido fica.
Assim como em Cidade das Sombras, as engrenagens de toda a metrópole mudam continuamente e os personagens esquecem suas identidades. Mas as estruturas continuam seguindo lógicas semelhantes. Permanece uma vaga sensação de estar sendo parasitado por alguma força misteriosa.
Parece que temos essa vocação pra criar mundos, esquecer que o fizemos, ficar presos neles, explorá-los e manter o desejo de encontrar uma saída. Adoramos sobrepor camadas e mais camadas desse exercício psicológico. Dos videogames até cidades de concreto. Multitasking de labirintos.
É engraçado que não basta olhar no espelho: precisamos mergulhar nele, esquecer que é uma imagem projetada. E tentar escapar dela. Sempre desconfiados. Sempre buscando novos caminhos.
Mais interessante ainda é que, praticamente todas as narrativas desse gênero concordam que precisamos de companheiros de jornada. Podemos até nos perder individualmente, mas sair, só coletivamente. Ainda que todos os parceiros morram até a última porta, você só chegou ali porque teve a ajuda dos outros.
No lostcore, a cada beco se esconde um inimigo, mas também um parceiro. Os personagens não encontram muitas respostas, mas aprendem o valor da convivência entre os diferentes. Será que a jornada da Internet terá um fim semelhante?