Câncer de Trópico 4: devolva meu romantismo
Série contando os últimos 22 dias do meu pai num hospital público de São Paulo.
Os corredores frios e acinzentados do hospital parecem um córrego de macas. Os parentes e acompanhantes fluem, esbarrando uns nos outros e se reorganizando constantemente. Os enfermeiros se esgueiram, desviando de pessoas e equipamentos, como se estivessem numa espécie de balé, com os braços em coreografias improvisadas pra evitar colisões.
No fundo do corredor, eu, Pai e Mãe, temos o nosso minuto de silêncio constrangedor. Não que silêncio seja algo possível no hospital. Há um constante ruído de vozes e ventiladores que se mistura com o som de gritos.
O grito mais próximo veio de um senhor muito magro, que tenta se levantar da maca, sem sucesso. Os acompanhantes se viram pra dissuadi-lo de puxar os tubos que o conectam ao soro e medicamentos:
– Não faz isso, tio! Vai ser pior!, diz uma adolescente, empurrando o peito do homem.
– A gente tem que sair daqui! Eles não vão deixar a gente sair! Eles querem que eu morra aqui!, ele rebate, começando com muito entusiasmo, mas perdendo a força aos poucos. Logo, ele colapsa no travesseiro.
Minha mãe me olha, esperando algum tipo de comentário. Mas quem responde é outra senhora, acompanhante do paciente da maca atrás da do meu pai. “Esse véio vai começar de novo? Hoje ele tá que tá“. Minha mãe só balança a cabeça. Uma voz masculina surge: “É pânico de hospital. Paciência. Ele já tá aqui faz umas semanas. Acontece mesmo. Acontece com acompanhante também, viu?”
A senhora baixa a cabeça e dá um sorriso amarelo pro homem. Ele parece ter uns 40 anos, já é grisalho e veste um jaleco branco. Ouço alguém gritar, do outro lado do córrego: “Psi! Vem cá, Psi!” O homem some tão fantasmagoricamente como surgiu. Especulo sobre como teria desaparecido desse jeito.
A voz do meu pai me traz de volta pra realidade:
– Falei pra sua mãe que você não precisava vir. Falei. Mas eu falando e o cachorro cagando é a mesma coisa, né?
– Mas você acha que eu não iria vir? Você é meu pai, pô.
– A sua irmã tá cuidando de tudo. Você não falou que não iria sair do retiro nem que o mundo acabasse?
Meus olhos ficam marejados e eu assumo um tom meio romântico:
– É. Mas você é meu pai! Não dava pra te deixar aqui depois de tudo o que a gente passou juntos.
O Pai olha pra minha mãe com uma expressão de “que porra é essa?”. O cara passou 5 meses trancado e voltou fresco desse jeito?
A Mãe me olha e arregala os olhos ligeiramente, como quem diz: “cala a boca”. E, por alguma dessas coisas inexplicáveis da comunicação não-verbal, entendo que ninguém contou a verdade pro Pai. Pelo jeito, ele ainda não sabe que o câncer está em metástase. Típico da família Fernandes: evitar o conflito ao máximo.
Minha mãe me puxa pro lado e diz, num tom meio ansioso:
– Você tá muito cansado da viagem. Vai pra casa, dormir, filho. Eu fico aqui mais um pouco. Seu irmão te leva.
– Mas a Irmã me ligou e disse pra vir direto pra cá. Ela quer que você vá descansar.
– Não precisa, Du. Nem tem espaço pra você ficar aqui no corredor. Eu me viro.
– Imagina! Eu ocupo o mesmo espaço que você. Você vai e eu fico.
– Du… por favor.
Entendo a expressão de comando. Ela deve estar com medo de que eu acabe entregando a situação pro Pai. Mas eu era um homem numa missão. Tinha uma catarse pra entregar. Viro pra ele e começo meu discurso, ensaiado desde a Sala do Tempo:
– Pai, eu tinha que vir. Não posso te abandonar nessa hora. Lá no retiro, percebi o quanto aprendi com você. Lembra quando a gente cruzava a periferia de São Paulo juntos? Quando a gente trabalhava vendendo comida?
O Pai parece confuso, mas ouve sem retrucar.
– Lembra do Roxo?
Roxo era o apelido de um “cliente” do meu Pai em Diadema, grande São Paulo. Era um pernambucano preto, forte e altíssimo, que tinha uma mercearia improvisada na garagem de casa, no alto de um morro. Pra chegar lá, era preciso pegar uma estrada de chão batido.
Ele comprava apenas uns poucos biscoitos a cada 15 dias. Subir até seu estabelecimento era mais arriscado do que lucrativo, já que (supostamente) o bairro era cheio de bandidos e traficantes. Mas meu Pai passava no local religiosamente, todas as semanas, dizendo gostar de conversar com o Roxo.
Aliás, conversar, aqui, é um termo um tanto impreciso. Pra mim, parecia mais que eles riam o tempo todo, sacaneando um ao outro. Basicamente, o Pai dizia que o Roxo não tinha espírito empreendedor, que não queria crescer na vida. No dialeto do meu pai, isso se chamava “maresia”. Roxo retrucava que enquanto meu pai estava ali em Diadema, minha mãe estava em casa “botando chifre” nele.
E assim eles ficavam, durante mais de meia hora. Eu fazia o papel de ajudante mudo (ou “secretário” no dialeto do meu Pai). Aparecia só de vez em quando, pra não soar arrogante. O que eu queria mesmo era fugir pro caminhão e ouvir rádios paulistas que, até hoje, tocam o mesmo soft-rock dos anos 70.
– O que tem o Roxo?, o Pai interrompe.
– Eu aprendi o respeito que você tem pelas pessoas humildes, a dedicação que…
Novamente, o Pai olha pra minha mãe como quem pergunta o que fizeram com o filho dele. Será que eu teria passado por algum processo de gentrificação?
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