Após 16 anos no ar, Marc Maron encerrou seu podcast. Barack Obama foi o último entrevistado. Na conversa, o ex-presidente dos EUA comenta que, não adianta o que façamos, cedo ou tarde precisamos admitir que nos desconectamos do nosso tempo.

Aconteceu comigo, com certeza. Mas queria propor que outras desconexões também acontecem:

  1. Certos gostos e narrativas perdem o sentido e o sabor. Nos alienamos do nosso passado.
  2. Boa parte dos nossos projetos e objetivos ficam obsoletos. Perdemos a solidez das expectativas de futuro.

Basicamente, ficamos flutuando numa nova percepção de tempo. E isso causa um certo pânico. Afinal, percebemos que não podemos controlar nossa identidade completamente.

Assim, algumas pessoas tentam se agarrar à idealização. E isso funciona em relação aos 3 tempos. No passado, leva à nostalgia. No futuro, à ideologia. No presente, ao FOMO (fear of missing out).

Não estou, exatamente, condenando essas tentativas de salvar a identidade da autodestruição natural que ocorre ao longo da vida. Em alguns casos, nostalgia, ideologia e FOMO podem ser usadas como táticas, meios hábeis e redução de danos.

Mas o envelhecimento mostra que é um absurdo medir a vida em termos de adaptabilidade ao zeitgeist. Ninguém precisa se adaptar a narrativas de passado, presente e futuro.

Em qualquer um desses 3 tempos, existe uma disputa de narrativas múltiplas e complexas. Nada é um bloco sólido. Passado, presente e futuro são zilhões de fenômenos movendo e mudando o tempo todo.

Então, não faz sentido sentir-se culpado por se desconectar da sua época. A qual das narrativas você escapou? E até que ponto? Acho até que deveríamos resgatar o orgulho de “perder” o bonde da história.

Quer um exemplo? Continue lendo.

A OpenAI lançou um novo navegador, chama-se Atlas.

Se funcionar como prometido, poderá ter acesso às suas senhas, hábitos e rastros cognitivos mais profundos. A coleta de dados das redes sociais parecerá coisa de amadores.

O “modo agente” do navegador poderá, inclusive, fazer compras por você. Isso nos levará a um nível ainda maior de alienação no consumo. Ficará ainda mais fácil (e invisível) pra empresas pré-selecionarem o que compramos e influenciarem os preços que pagamos.

Atlas é uma excelente oportunidade pra merdalização. Ao usá-lo, entregaremos pra uma empresa (dos EUA), não só nossos dados, mas também o hábito de pesquisar, de comparar e decidir. Adicionaremos mais um mediador às nossas vidas.

Fora que, para funcionar em larga escala, esse “agente” precisa de uma estrutura energética que o planeta ainda não tem como manifestar.

Quando a bolha da IA estourar, Atlas pode acabar derrubando (e quebrando) nossos mundos. Zeus não deve ajudá-lo.

O prazer de ignorar o zeitgeist

É mais do que saudável estar “desconectado” da época. Esperar, pensar melhor, contentar-se com o que já funciona… por que isso seria conservadorismo ou negacionismo?

Na verdade, nós é que somos como Atlas, o personagem grego. Fomos condenados a carregar esse fardo que a Modernidade colocou nos nossos ombros: a necessidade de inovar rapidamente, a qualquer custo.

Precisamos mesmo correr pra nos adaptar ao hype da onipresença da IA? Precisamos mesmo acreditar que usar essas tecnologias é algo divertido? Nossa falta de criatividade e escravidão cognitiva chegaram mesmo a esse ponto?

Não sei. O fato é que eu não vou clicar em “instalar”. Estou numas de obsolescência voluntária.

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  • Há coisas que só o Cory Doctorow consegue traduzir. Por exemplo, o tamanho da bolha de IA que está prestes a estourar. Eu fazia a mínima ideia de quão frágil são as finanças de empresas como a OpenIA. Talvez nem governos tenham dinheiro pra salvá-las. Ainda assim, de certa forma, o artigo é otimista: Doctorow acredita que os modelos de IA caros, monopolistas e EUA-cêntricos podem dar lugar a outros menores, mais eficientes e distribuídos no Sul Global e Ásia.
  • Toda vez que lhe disserem que não há alternativas aos aplicativos alinhados com os valores da big tech, mande esse link: https://euro-stack.com/ Será que há versões brasileiras de sites como esse? Deve haver.

O novo navegador da OpenAI

O prazer de ficar velho e não se empolgar com novos aplicativos.