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A criança
Tenho a sensação de que "aproveitei" pouco Hermeto Pascoal. Assisti a um único show dele: "Eu e eles", num Sesc. Azar, porque, ao vivo, sua música ganhava muita força. E carisma, claro.
Hermeto tinha essa energia, digamos, infantil, de quem nunca precisou (que eu saiba) afogar (muito) suas tendências lúdicas, experimentais e absurdas.
Por exemplo, numa entrevista, ele conta que, certo dia, no meio do trânsito em São Paulo, parou pra abraçar um poste. Fechou os olhos e ficou ouvindo os ritmos e sonoridades dos carros.
Esse é um privilégio que poucos de nós temos oportunidade de experimentar: a validação das nossas obsessões e prazeres. Outros paulistas, talvez, estavam nos carros, ouvindo outra melodia, aquela de Billy Blanco, de uma antiga vinheta da Jovem Pan FM:
De metrô chego primeiro
Se tempo é dinheiro
Melhor vou faturar
Sempre ligeiro na rua
Como quem sabe o que quer
Vai o paulista na sua
Para o que der e vier
A cidade não desperta
Apenas acerta
A sua posição
Porque tudo se repete
São sete, e às sete
Explode em multidão
Portas de aço levantam!
Todos parecem correr!
Não correm de, correm para
Para São Paulo crescer!
Vam bora, vam bora
Olha a hora
Vam bora, vam bora
Por um lado, o carma estilo Hermeto Pascoal me parece bom: mais propenso à liberdade, à diversão, à leveza, à flexibilidade – talvez, até mesmo à compaixão.
Por outro, pode levar uma pessoa a gravitar em torno do umbigo e se tornar um peso na vida dos outros: o artista autocentrado, dependente e chiliquento.
Não estou criticando Hermeto, pelamordedeus. Não o conheci pessoalmente. E tudo indica que tenha sido uma pessoa maravilhosa.
Minha ideia é tentar enxergar além do meu desejo (um tanto irritante) de ter um carma semelhante ao de Hermeto. Sempre quis viver das minhas obsessões e poder sambar por aí, sem esquentar a cabeça.
Hermeto parecia viver num ambiente mental de abundância, de possibilidades infinitas. Mas sua gestualidade sugeria uma pessoa inquieta, sempre "batucando" com a mente, se engajando em fluxos criativos.
Não importa o quanto a Era Moderna valorize a ansiedade criativa, viver nesse estado mental geralmente é um pesadelo.
Ainda assim (ou talvez por causa disso), Hermeto era um mestre na prática de usar qualquer coisa que estivesse ao alcance pra criar.
A técnica: I.S.R.U.
O que me leva ao conceito de I.S.R.U (In Situ Resource Utilization), Uso de Recursos Locais.
É um nome extravagante pra uma prática ancestral. Ele veio das pesquisas espaciais da NASA. Refere-se a usar materiais disponíveis nos ambientes de pesquisa, em vez de "importar" recursos caros, vindos da Terra.
O escultor norte-americano Tom Sachs se apropriou desse termo pra outra coisa: vender tênis.
O trabalhador
Há alguns anos, Sachs estabeleceu uma parceria com a Nike pra criar o Mars Yard. Os sapatos foram lançados em pequenas quantidades e, rapidamente, se tornaram um artigo de luxo, circulando por cerca de U$ 4 mil o par, no mercado paralelo.
E o que levou as pessoas a pagar tanto pelo objeto? O motivo de sempre: storytelling. Nesse vídeo, você confere a versão oficial.
O resumo é o seguinte: Mars Yard é supostamente durável e robusto. É dedicado aos geeks, aos fãs das narrativas imperialistas (e ufanistas) em torno da NASA, aos praticantes de nostalgia da cultura pop dos anos 80 e 90. Tudo isso filtrado por meio do romantismo da prática do Faça Você Mesmo.
Sachs é conhecido por recriar estações espaciais inteiras, usando compensados mal cortados, parafusos, canos enferrujados e ferramentas de marceneiros.
Ele passa a sensação de que é um trabalhador braçal que achou um jeito de reivindicar a posse de coisas inacessíveis à "classe trabalhadora".
No caso, marcas corporativas tradicionais (como McDonalds), artigos luxuosos (como Chanel) e projetos milionários (como a arquitetura de Marcel Breuer).
A parte mais interessante é que Sachs incorporou a força gravitacional que mantém o imaginário, a ética e a moral dos trabalhadores: a méritrocracia. E a infundiu de um aspecto sagrado e engajador, quase religioso.
Por exemplo, para poder comprar a nova versão do Mars Yard, o consumidor terá que provar que é digno do objeto. Não basta ter dinheiro ou chegar antes.
Sachs desenvolveu um aplicativo chamado, exatamente, de I.S.R.U.. Convocou seus fãs a uma espécie de concurso. Eles precisariam passar por provas regulares de disciplina, de resistência física e criatividade. Depois, enviariam vídeos das suas conquistas. Os que atingissem maior pontuação, ganhariam a benção do link pra comprar os tênis.
Enquanto isso, Sachs publicava filmes curtos, motivando os participantes e reforçando o discurso do trabalho duro, da consistência, dos rituais de autoaperfeiçoamento.
Mas o que isso tem a ver com Hermeto?
Hermeto Pascoal parecia ser mestre de um outro I.S.R.U., o da abundância – esse planeta cheio de sons pra codificar. Sachs navega na ausência – essas coisas que eu não posso ter ou criar, mas vou simular.
Sachs também cultua as "imperfeições", os erros, a falta de recurso, o wabi-sabi. Isso é o que traria um aspecto humano pra uma produção (como se o desejo pela simetria, pela "perfeição mecânica", pela ausência de incoveniência também não fossem características humanas).
Por isso, pra minha mente moralista, soa tão estranho que Sachs tenha se associado a uma corporação e não a um sapateiro, a um artesão local.
De qualquer forma, não estou sugerindo que você odeie Tom Sachs. O pior resultado possível da leitura desse artigo é fazer você entrar num estado mental ainda mais combativo e maniqueísta.
A força das narrativas
O que estou tentando enxergar é a força das narrativas, o quanto elas são manipuladoras.
De um lado, temos a "liberdade" brincalhona de Hermeto. De outro, a "liberdade" disciplinar de Tom Sachs. São histórias que nos impulsionam a continuar a desejar, a consumir um estilo de vida.
É claro que minha tendência aqui é dizer: escolha a de Hermeto. Mas, no fundo, o desejo de se perseguir e manter uma narrativa sempre vai trazer sofrimento.
Ainda assim, é certo que alguns tipos de narrativas são mais fáceis de serem utilizadas pelo marketing.
Essencialmente, é preciso aguçar a capacidade de "decompor" narrativas. Percebê-las ainda no seu estágio de surgimento, notar seus componentes e desenvolver a capacidade de resistir a elas.
Esse seria quase que um sétimo sentido: a capacidade de intuir a presença da narrativa, a sensação de uma manipulação em desenvolvimento. Daí, surfar na boca do vórtex. Ou melhor, desenvolver a capacidade de dizer: "espera aí, não preciso dessa storytelling".
Acho que Hermeto iria gostar dessa ideia. Não é?
Hermeto não vende Nike
Dois estilos de vida artística: Hermeto Pascoal e Tom Sachs.