Eu sou um marginal

Ou como a gambiarra se expande exponencialmente.

Eu sou um marginal
Minha vida burocrática parece um servidor, cheio de cabos bagunçados.

Finalmente, decidi comprar um celular novo. Fui ao ebay e encomendei um iPhone 13 recondicionado. E, no processo de passar os meus dados pro aparelho, me dei conta de como sou um marginal.

Marginal não significa criminoso, mas alguém que vive às margens do sistema. Explico.

Desde 2008, não consigo comprovar residência direito. Pelo simples motivo de que não tenho uma. Sou voluntário de centros budistas desde essa época. Não pago aluguel formalmente, não assinei contratos. Cuido de casas vazias pros amigos.

Quase todas as minhas fontes de renda foram informais por mais de uma década. Nem é pra sonegar imposto. É que eu ia me viravando no estilo freestyle, pequenos arranjos no boca-a-boca. Vida simples, funciona. Hoje em dia, virei adulto: pelo menos, tenho uma microempresa, escrevo roteiros pra podcasts.

Tenho nenhuma dívida. Minha ficha é limpíssima. Mas não tenho as indicações comuns de confiabilidade. Sem carro, sem filhos, sem propriedades, um buraco de 6 anos no meu currículo (quando participei de um retiro budista).

Até meu telefone velho era jailbroken. Ganhei de um parente falecido. Ele tinha o “Find My Phone” ativado e a Apple não confiou nos documentos que apresentei (óbito, etc.), quando tentei desbloquear o aparelho pelas vias oficiais.

Agora, transferindo os dados, muitos dos aplicativos precisaram enviar confirmações de identidade via SMS. Mas estou nos EUA (legalmente) e não tenho um número americano. Afinal, como aqui na montanha nenhuma companhia funciona confortavelmente, tenho me virado via wi-fi mesmo. E economizo mais essa despesa.

Outro dia, até tentei comprar uma linha da US Mobile. Mas fui impedido, já que meu cartão de crédito tem endereço brasileiro. Tenho o dinheiro pra pagar, mas não posso, graças a uma restrição do sistema. Ok. O wi-fi funciona.

Sempre acabo dando um jeito de contornar as burocracias. São quase 20 anos de experiência. É como se minha vida fosse uma costura de gambiarras. Mas, de verdade, não posso reclamar.

O problema é que, de acordo com os padrões de confiabilidade contemporânea, a cada passo que dou pareço mais marginal. Afinal, sou obrigado a sobrepor soluções alternativas. É quase uma daquelas esculturas, feitas com peças de dominó.

Em tese, as regras surgem pra evitar fraudes, certo? Mas, se o criminoso as segue à risca, é fácil simular confiabilidade. Porque, num certo sentido, a burocracia cria uma “to-do list”, que pode ser hackeada.

Mas, se você é uma pessoa honesta, e apenas tem um estilo de vida incomum, pode acabar parecendo um larápio. Por pressuposto.

Enfim. É isso ou eu estou precisando de um(a) secretário(a). Ou de vergonha na cara. Sei lá.