Desconfiança geral

O que fazer quando a manipulação digital de imagens fica boa demais?

Pelo jeito, não podemos mais confiar em fotos. E essa é uma novidade repetida desde a criação da fotografia, por volta de 1717.

Mas comecemos do começo.

Qualquer playboy que comprar o novo celular Pixel 9, do Google, terá acesso a uma atualização do aplicativo Magic Editor. É uma poderosa ferramenta de IA, capaz de gerar imagens bastantes realistas.

Os testes da The Verge impressionam. As fotos geradas pela jornalista Sarah Jeong confundem até especialistas. Tanto que ela termina o texto literalmente dizendo que "estamos fodidos".

Parece até que, um dia, fotos já foram algo confiável e livre de polêmica. Só agora, que as pessoas "comuns" têm acesso à manipulação digital, é que existe um risco contra A Verdade.

Não sei.

Eu mesmo comecei minha carreira, nos anos 2000, editando fotos de mulheres nuas pra uma revista paulistana descolada. Já tirei muitos ossos indesejados usando Photoshop. E isso depois dos maquiadores, iluminadores e fotógrafos já terem adaptado as modelos aos padrões de beleza da época.

Obviamente, existe uma briga antiga entre confiança e desconfiança. E em várias áreas da existência – a fotografia sendo apenas uma delas.

Por exemplo, se você quer fechar um negócio, não basta dar sua palavra, tem que assinar um contrato. Um cartório valida a assinatura. O Estado valida o cartório.

O Estado é dividido em três poderes, que supostamente se checam mutualmente. Em tese, jornalistas vigiam os três. A justiça fica de olho nos jornalistas. A filosofia e as ciências cuidariam do pensamento. E assim por diante.

Estou simplificando, é claro. Mas a ideia é que a desconfiança é total e generalizada, desde sempre.

Ou melhor: confiança é que é uma prática dinâmica, temporária e contextual. Está sempre no limite, sempre a um passo de entrar em colapso. É uma aposta. "Considerando tudo o que consigo saber até agora, declaro que confio nisso – até que se prove o contrário".

Parece assustador. Mas não é assim que vivemos, no geral? Quando acordamos pela manhã, não temos como garantir que chegaremos vivos à noite. Quando assinamos qualquer contrato, temos a aspiração de poder cumpri-lo. Mas tudo pode acontecer.

A linguagem cotidiana não dá conta da dinâmica da realidade. Até nas coisas mais simples.

Por exemplo, quando olhamos nossas mãos, não pensamos em dedos, ossos, sangue fluindo, pele nascendo e morrendo, temperaturas mudando, etc. Usamos a palavra "mão", que é genérica, estática e esconde seus próprios limites. Portanto, não é um conceito digno de confiança. Apenas útil, porque nos acostumamos a usá-lo.

Assim, a linguagem é um tanto como a fotografia: uma captura de um momento, uma tentativa de simplificá-lo. Mas basta analisá-la com cuidado que a dinâmica volta rapidamente: você vê as luzes, os pontos-de-vista, os contextos históricos e as tecnologias usadas naquela imagem.

É claro que podemos (e devemos) exigir que companhias como o Google insiram algum tipo de marca d'água em imagens manipuladas via IA. É claro que podemos treinar as pessoas a lidar com a mídia, desde criança, na escola. Mas conviver com a instabilidade da vida é algo muito mais profundo.

Nossos consensos são fluidos. Estão em constante degradação, em reconstrução permanente. Como sociedade, vamos continuar tentando manter a aparência de que tudo está sob controle. Mas, no fundo, sabemos que, a cada nova tecnologia, surgem novos pânicos.

Estamos "fodidos", como diz a jornalista do The Verge? Só enquanto acreditarmos que existe uma segurança perfeita, um paraíso de confiança imaculada.

Eu mesmo nunca confiei em fotos. Em especial porque elas revelam várias verdades – mais do que consigo apreender. A do fotógrafo, a minha, a da cultura, a da tecnologia disponível, as aspirações e medos da época, etc. E aí é que está a graça da fotografia.

Desconfio totalmente de ti, mas te amo, sua linda.