Como se viciar em calças jeans
Até os produtos mais tediosos são vendidos com técnicas da indústria do entretenimento.
Não é fácil se livrar do consumismo. Especialmente hoje, quando até os produtos mais tediosos se transformaram em entretenimento. Por exemplo, calças jeans.
Começaram como roupas de trabalho, feitas pra apanhar e durar. Mas, ao longo do século 20, foram associadas à cultura pop. Então, passaram a simbolizar tanto rebeldia quanto seu oposto, a tradição e estabilidade. Duas pernas, duas políticas.
Hoje, há quem venda jeans usando técnicas editoriais. Ou seja: jeans como conteúdo. Vamos entender como isso funciona, seguindo o trabalho da marca canadense Naked & Famous.
Foco num nicho
Naked & Famous atende a um nicho bem específico: os fãs de jeans grossos, de cortes vintage e tingidos com técnicas tradicionais japonesas.
Mas não busca um mercado premium, como a Iron Heart e a Kato, cujas calças custam, em média, U$ 400. N&F está mais pro nível de entrada, pro fã de classe média, disposto a gastar na faixa dos U$ 200.
Missionarismo
Entrar na bolha do chamado raw denim exige compromisso. Os consumidores precisam tolerar o desconforto e a rigidez inicial do jeans. É o chamado período de break-in.
Alguns vestem as mesmas calças diariamente, por meses seguidos, sem lavá-las. O objetivo é obter sinais de desgaste cheios de contraste atrás dos joelhos, nos bolsos, etc. Esses são os fades.
Desenvolvimento de comunidades
Os consumidores de raw denim usam plataformas como o YouTube pra receber novidades regulares. Eles também comparam seus padrões de fades, debatem sobre como obter os melhores resultados e falam sobre o progresso da sua jornada, em fóruns no Reddit.
Mostrar um diferencial
A N&F tem modelos básicos (e uma empresa paralela, dedicada a eles, a Unbranded Brand). Mas é mais conhecida pelos seus produtos inusitados. Coisas como jeans que brilham no escuro, coloridos com essências de frutas, feitos a partir de quimonos reciclados e até associados a personagens de mangás.
Periodicidade
N&F lança algo novo praticamente todas as semanas, em seu canal do YouTube. Vive em busca de novos temas, como se fosse uma empresa jornalística.
As marcas de fast-fashion nos fazem consumir mais porque os produtos duram pouco. Já empresas de ID-engineering-fashion (engenharia de identidade), como a N&F e a MSCHF, usam o FOMO, o desejo por novidades e o senso de descoberta. Calças “feitas de dopamina”.
Manutenção do interesse
Não basta fazer jeans. É preciso ser uma produtora de mídia. A N&F mostra os bastidores da sua loja, estimula relações parassociais com os vendedores, faz análises de fade das calças e até scratch tests (que mostram como o jeans soa, quando raspado com as unhas).
Integração da comunidade
Recentemente, após receber uma sugestão via comentários do YouTube, a empresa lançou uma série de calças inspiradas por pinturas famosas.
Mas você (ainda) não verá uma calça que se pareça com uma tela de Juan Miró. O jeans é, basicamente, índigo, tradicionalíssimo. Se você olhar atentamente, muito atentamente, verá as cores contidas num certo quadro, aparecendo no verso do jeans.
O importante é que se abriu uma nova toca de coelho: por que não produzir um jeans Picasso? Mondrian? Monet? Ainda que seja só num detalhe interno do bolso de moedas. Ninguém vai perceber. Mas os verdadeiros apreciadores, ah, esses reconhecerão o valor do produto.
Psicologia da marca
A N&F atende ao hábito do nerdismo. E o desejo pertencer a uma comunidade exclusiva. É a mentalidade hipster, que herdamos da imprensa de cultura pop, desde os anos 60. Ou seja: jeans também pode ser mídia.
Midialização da vida.
Roupas usadas
Algumas pessoas se rebelam contra isso e fogem pra sites de comércio de roupas usadas. Nos EUA, os principais são o ebay, Poshmark e Depop.
Uma vez neles, percebem-se presas aos mesmos padrões de consumo compulsivos das redes sociais. Afinal, os aplicativos seguem as mesmas técnicas de “engajamento”, que aprenderam da Big Tech.
O ponto crucial
É por isso que fugir do consumismo não é tão simples. A lógica editorial e as mecânicas da indústria do entretenimento formaram um sistema operacional otimizado pra transformar qualquer coisa em consumo regular e compulsivo. De calças a ativismo. De ideologias até a passividade.
Não há como se livrar do consumismo sem abandonar as técnicas do entretenimento industrial.
É triste, porque somos crias dessa indústria. Ela tem um significado quase visceral pras gerações do pós-Segunda Guerra Mundial.
Pra alguns de nós, o entretenimento é amor supremo da vida, mais importante até do que os tradicionais dinheiro, família e religião. É o consolo máximo e o refúgio mais constante e “confiável”.
Mas, ainda que não sejamos capazes de imaginar outras formas de existir, pelo menos reconhecer as técnicas da midialização da vida já pode economizar uma parte do salário.
Ou, talvez, alguns recursos do planeta.