Como é fácil fazer besteira
Comentando o filme Sybil, de 2019, no qual uma terapeuta perde a noção da própria realidade.
Ontem, eu estava procrastinando pra fazer meu imposto de renda e acabei assistindo à Sybil, da diretora francesa Justine Triet.
É um filme de 2019, deliciosamente estranho. Meio comédia, meio drama, meio experimental, meio cringe e meio sexy. Conta a história de uma psicóloga de uns 40 anos, Sybil, que decide virar escritora.
Mas, espere aí, não pare de ler ainda.
Sybil é ex-baladeira, ex-alcoólatra e ex-namorada de um sujeito chamado Gabriel. O relacionamento entre eles termina quando o rapaz decide largar a vida louca.
Sybil arranja um marido (pelo qual não tem atração sexual), monta uma família e tenta suportar a saudade dos momentos mais agitados da vida.
Daí que, abduzida pela literatura, ela troca todos os seus clientes por um processador de textos. Só que não consegue escrever.
Mas, espere aí, não pare de ler o texto ainda.
Sybil é atropelada por ligações insistentes. São de uma jovem atriz, que diz estar desesperada, precisando de terapia imediatamente. O celular não para de tocar e as mensagens de texto não param de surgir.
Sybil sente-se pressionada e resolve atender a moça. Ela se chama Margot Vasilis, papel de Adèle Exarchopoulos. Confesso que eu também teria dificuldades de negar um pedido de Adèle. Não sei, sou atraído por mulheres com crase no e.
A história de Margot começa a inspirar Sybil a escrever. A psicóloga esconde um celular e grava as sessões de terapia, sem autorização da paciente. Depois reconta a história no seu livro.
A onipresença da tecnologia tem um papel fundamental na história. Ela facilita Margot a manipular a terapeuta. O bombardeio de mensagens ajuda a colocar Sybil num estado mental de culpa e compulsividade.
Sybil não consegue se defender: por um lado, quer evitar as mensagens de Margot. Por outro, precisa de mais mensagens pra saber se tudo está bem com ela. Também entra num loop de ler e reler as comunicações pra aplacar a culpa e sentir-se no controle da situação.
Mas a tecnologia também ajuda Sybil. No caso, a escorregar na ética da profissão. Até recentemente, ser stalker, registrar a vida alheia, era coisa pra profissionais. Coisa pro Gene Hackman, usando fitas de rolo, etc. Agora, a Siri mesmo resolve.
No mundo da conveniência total, não há muito tempo pra pensar. É tão fácil realizar desejos que surge uma mega inconveniência: gerenciar a impulsividade. Trocamos alguns aborrecimentos da vida pela maior tarefa da espécie (que já vem designada de fábrica), o autocontrole.
E Sybil vai perdendo o dela. Aos poucos, se enrola cada vez mais com Margot. Aceita até ir a um set de filmagem, na qual acaba mediando a relação da atriz com uma diretora de cinema chiliquenta e um amante.
A partir de então, a história vira uma espécie de Inception à francesa. Sybil está num filme dentro de outro, tentando escrever um romance que está reescrevendo sua própria vida. Enquanto isso, continua reciclando seu passado com Gabriel. Transa com um homem, fantasiando outro.
Estou resistindo bravamente aos spoilers. Mas avanço só mais um pouquinho. É que a história muda radicalmente, graças a uma falha tecnológica. Quer dizer, não é bem uma falha. Na verdade, é uma eficiência que causa um problema pra Sybil.
No mundo da conveniência total, estamos sempre prestes a ser desnudados. Pelas falhas e pelas eficácias. O problema é sempre o contexto: o erro de um pode ser o acerto de outro. A facilidade atual pode ser o problema futuro.
Nós tendemos a pensar em começos, meios e fins. Mas cada decisão, cada tecnologia abre novos universos paralelos que se influenciam mutualmente. E que disparam sementes pra todos os lados, inclusive pro passado.
Quanto mais aceleração, mais complexidade. A inconveniência, às vezes, é uma rede de segurança. Não há nenhuma novidade nisso. No entanto, ainda cultuamos essa visão dualista e simplista de conveniência contra inconveniência.
Como teria sido a história de Sybil sem o celular à mão? Que caminhos seu desejo teria encontrado?
Agora deu vontade de assistir ao outro Sybil, o filme de 1976. E o de 2007. Mas, antes, é melhor enfrentar a inconveniência do imposto de renda.
PS – Sybil é o nome de uma mulher que ficou famosa no século passado porque, em tese, tinha múltiplas personalidades. Até onde sei, alguns psicólogos ainda estudam seu caso.