Caminho de Santiago do Tietê

Praticando trilha urbana na madrugada de São Paulo.

Que estranho. Três grandes provedores de IA generativa pararam de funcionar por alguns minutos, ontem: ChatGPT, Perplexity IA e Claude (da Amazon). Só o Gemini continuou geminando. Claro, não faltaram piadas e alarmismo na Internet. Apocalipse tecnológico? A Skynet acordou?

Não sei. Só sei que o fenômeno não me afetou.

Na hora do primeiro apagão da história da IA, eu estava praticando meu esporte preferido, andar. Como era no mato e na Califórnia, acho que posso chamar a prática de “hiking”. Em português, é a boa e velha trilha, atividade que está nos meus genes desde o Peabiru.

Nietzsche dizia que só confiava nas ideias que surgiam enquanto ele estava caminhando. Entendo. Mas, pra mim, que sou mais prosaico e menos germânico, a trilha tem outro efeito: o de regulador emocional. Diminui o peso dos meus pensamentos. É praticamente automático: é só olhar pras sequoias e sinto um certo espaço mental.

Mas trilha não é privilégio de quem mora em ambiente rural. Tanto que existe algo chamado urban hiking, trilha urbana. Nada a ver com escolher um parque e passear com o cachorro. Trilha implica algum desafio. Existe até uma classificação de níveis de dificuldade. No mínimo é preciso ofegar. Talvez até entrar em caminhos desconhecidos.

É provável que, na São Paulo de 2024, fazer trilha envolva vestir armadura, máscara de gás, levar dois celulares extras: um pro bandido e outro pro filho dele. Mochilas, walking sticks e garrafas d’água são pros amadores.

Mas, fato é que, por volta de 2002, sem saber, fui um praticante de trilha urbana.

Nessa época, eu ainda tentava sair à noite. E aconteceu de me encontrar num bar clássico da Vila Madalena, a Torre do Dr. Zero. Era na Rua Fradique Coutinho? Quase certeza.

Pois eu tentava conversar com um casal, quando, de repente, me bateu uma das minhas clássicas aversões à sociabilidade. Simplesmente não aguentava mais aquelas pessoas.

Como, na época, eu não era budista, não conhecia essa opção de parar e observar a emoção. Eu precisava fugir daquilo. Pedi licença às minhas companhias e zarpei pra rua, sem saber direito pra onde ir. Estava sóbrio de álcool, mas doido de aflição.

Era uma noite de transição pro horário de verão. Olhei no relógio: 23h45. Em qual dos horários os ônibus parariam de circular? Na primeira meia-noite ou na segunda?

Como na época não existia Uber e nem iPhone, resolvi caminhar pelo trajeto de uma das linhas de ônibus que servia meu bairro, Pirituba, na periferia de São Paulo. Assim, segui pelas ruas da Vila Madalena, esperando encontrar a condução no caminho. Rua Wizard, Rodésia, Heitor Penteado e nada. 00h15, nem sinal do 847P.

Aos poucos, como esperado, as subidas da Vila foram dissipando meu estado emocional, dando lugar a um padrão mental mais contemplativo e calmo.

Time ganhando, continuei, até chegar a um ponto decisivo da Heitor Penteado: tento dormir, como de costume, escondido no metrô ou no quiosque do caixa eletrônico (que eu chamava de Hotel Bradesco)? Ou continuo em direção ao Sumaré?

A noite estava fria. Era fácil andar. Não havia muitos carros na rua. Portanto, segui, afundando cada vez mais nas ruas e vielas mal iluminadas da Vila Romana. A paisagem já estava mais ameaçadora.

Mas eu não me preocupava. Em 2002, eu achava que iria me tornar um romancista. Então, estava perdido na narração do meu mini Caminho de Santiago. É comum que, na cabeça de escritores ou aspirantes, descrições comecem a borbulhar naturalmente. Aí eles interagem com a realidade por meio da literatura, criando parágrafos mentais e anotando ideias pra livros.

Ao chegar na Rua Clélia, na Lapa, começou uma garoa fina. Eu continuava no meu próprio filme do Wong Kar-Wai, narrando as luzes dos semáforos refletidas em poças d’água. Entrei na Guaicurus. Nenhuma tribo inimiga à vista. Aparentemente, não migraremos de filme, pro The Warriors. Afinal, eu nem mesmo tinha uma gangue pra chamar de minha.

A trilha ia subindo de nível, na classificação.

Seria uma boa ideia seguir pela Lapa de baixo? De qualquer forma, eu teria que enfrentar a Ponte do Piqueri, cruzando o perfume cadavérico do Rio Tietê. E torcer pra que nenhum policial ou militar entediado resolvesse me interromper.

Agora, os pensamentos ganhavam um tom mais prático. Não é que eu estivesse com medo. Só não flutuava mais na noosfera. Minha mente já estava plenamente engajada em ficar alerta e garantir que o corpo chegasse em casa, em segurança.

Então, finalmente, a Marginal Tietê.

A garoa tinha parado, mal molhou meus cabelos. Subi na ponte do Piqueri e, quase no meio do trajeto, parei pra observar o rio. Um mar de merda e dejetos químicos, no meio da cidade. Fiquei mais um pouco ali, contemplando uma apreensão que tomava meu corpo, deixando as pernas tensas. E seu eu caísse ali? Me transformaria numa espécie de Monstro do Pântano? Morreria?

Encostei no parapeito, como um turista viciado em filmes B dos anos 80. Durante o dia, não teria tanta coragem. Os carros estariam parados e as motos cruzariam por todos os lados, soando como dragões. Mas, naquela noite, o silêncio era total. Até mesmo os poucos veículos que cruzavam a ponte pareciam estar rodando na ponta dos pés.

De repente, um carro começou a se aproximar, lentamente. As janelas se abriram. Meu sangue gelou. Mas, como estava um tanto acostumado com a tensão das periferias, apenas continuei andando, fingindo que não percebi o movimento.

Felizmente, como num bom livro de Haruki Murakami, o drama se dissipou como surgiu, sem explicação ou resolução. Interpretei a cena como um bom sinal e apertei o passo, assim que o carro sumiu.

Segui pela Avenida Otaviano Alves de Lima e depois subi pela Raimundo Pereira de Magalhães. Na época, não havia shopping center ali. Apenas mato e escuridão. Mais acima, havia um enorme complexo abandonado do Banespa, onde, na adolescência, às vezes, eu ia brincar.

Tecnicamente, eu estava na rua de casa. Mas distante uns quilômetros do meu destino. É que “a Raimundo” (a avenida era não binária) cortava o bairro de Pirituba, praticamente inteiro. Segui pelas ruas internas, sem encontrar uma alma acordada.

Cerca de 3 horas depois da minha saída da Vila Madalena, eu girei a chave do portão da casa onde cresci, na Rua Soldado João de Oliveira. A salvo, sem sequer me lembrar do desespero que me tirou da Torre do Dr. Zero.

Segundo o Google Maps, eu devo ter andado cerca de 11,2 quilômetros. Nem é muito. Mas o aplicativo me adverte: “Tenha cuidado. As rotas a pé nem sempre refletem as condições reais.” Obrigado, Mr. Google.

É claro que, em 2002, eu sequer tive a ideia de contar o tempo gasto, ou a distância, ou o número de passos. Não usei fones de ouvido durante o trajeto. Não consultei a rota no celular. Meu guia foi a memória. Meus passos foram meu Uber. Minha segurança foi a sorte e o estado de alerta.

Acho que isso conta como trilha urbana, não é?