Autoconhecimento vs quantified self

Porque culpa e compulsão são obstáculos ao autoconhecimento.

Autoconhecimento vs quantified self
Dashboard de um aplicativo de quantified self.

Outro dia, escrevi sobre investigar os gatilhos que levam a comportamentos compulsivos online. O texto proporcionou algumas interações curiosas com leitores. Dois fenômenos surgiram com frequência:

  • Culpa - A pessoa parecia sentir-se culpada por se deixar engolir pelo vórtex cultural digital.
  • Justificação - Ela listava hábitos e rotinas provando que “está no controle”.

Interessante. Mas é fundamental entender que culpa não ajuda em nada.

O que são gatilhos

Antes de continuar, admito que não esclareci bem o que é investigar gatilhos. Não estou propondo, exatamente, mergulhos existenciais ou questionamentos filosóficos. A coisa é bem mais simples.

Por exemplo: imagine que ao chegar em casa, eu ligue a TV automaticamente. É um hábito que tem vários níveis de investigação.

Só no psicológico, eu poderia me perguntar: por que faço isso? Preciso de alguma forma de companhia sem consequências? Sinto-me solitário? Tento evitar ouvir meus próprios pensamentos? E por aí vai.

Essas são questões importantes, claro. Mas não estou falando delas.

O gatilho aqui é ligar a TV. O ato em si. Porque ele um portal pra outros comportamentos. Por exemplo:

  • Atenção fragmentada. Eu precisaria trocar de foco constantemente entre ouvir a TV e fazer outras tarefas. Dependendo da situação, demoraria o dobro do tempo pra concluí-las. E ainda não aproveitaria a TV.
  • Treinamento pra depender de estímulo constante. Acostumaria meu cérebro a precisar de um fluxo contínuo de entretenimento.
  • O que leva à superficialidade compulsiva, já que as pausas são um elemento fundamental pra processar informação. Eu me tornaria um consumidor autômato de conteúdo pra esquecer de tudo, segundos depois.
  • Treinamento pra só conseguir se divertir com mídia. Aos poucos, eu perderia a sensibilidade pra prazeres cotidianos. Os cheiros, os movimentos do corpo, a convivência cotidiana com pessoas, tudo se tornaria chato. Só conseguiria sentir prazer ao consumir entretenimento.

Ou seja, investigar gatilhos é uma atividade prática. Se o celular está ao lado da cama, maior a chance de olhar pra ele, quando acordo. Simples assim.

Também é uma medida paliativa pra conseguir algum nível de autocontrole, enquanto trabalhamos em questões psicológicas mais profundas.

Quando nos aventuramos nelas, a culpa surge como um grande obstáculo, uma espécie de leão de chácara. Porque ela nos congela na autocomiseração.

Foco na rotina

A ideia do autoconhecimento é entender as engrenagens das situações. Secundariamente, detectar situações que gostaríamos de mudar.

A partir daí, propomos soluções práticas e pontuais. Passo a passo, sem grandes expectativas. É como quem odeia ir pra academia. Aparecer lá diariamente e fazer algum exercício já é a vitória. A pessoa falhou? Começa de novo, sem perder tempo se culpando pela preguiça.

Essa é a diferença fundamental entre autoconhecimento e as estatísticas que as empresas de tecnologia nos oferecem diariamente:

  • A mentalidade do quantified self nos gamefica, incentiva a culpa, a comparação e o comportamento compulsivo. O foco é em resultados. A palavra-chave é crescimento.
  • O autoconhecimento é gentil, prático, solto e imperfeito. Até pode ter metas, mas se foca em rotinas, em saborear o processo de entender o quão multifacetada e complexa a pessoa é. As palavras-chave são flexibilidade e resiliência.

Do ponto de vista do autoconhecimento, nem sequer existe um resultado pra atingir strictu senso. Existe a observação constante das narrativas (e consequências) surgindo e dissolvendo.

O praticante não procura um título, um nível pra atingir, nem uma estratégia pra se diferenciar das outras pessoas. Está interessado, exatamente, nos pontos em que a criatividade é possível. Onde não é preciso provar nada, nem pra si mesmo.

Assim, culpa é um dos mais comuns obstáculos da jornada de autoconhecimento. Ela pode ser restritiva e estática.

É preferível usar a técnica da responsabilidade. Ok, percebo meu erro, sou responsável por ele. Mas não sou aquilo. Estou em constante movimento.