Cedo ou tarde, tudo muda de função. Até os banheiros. Mas, antes de mergulhar no assunto, precisamos entender um pouco da tradição de diversidade e multifuncionalidade dos toaletes. Provavelmente, eles nunca serviram apenas pra resolver necessidades biológicas.
Basta ir a qualquer rodoviária (não só no Brasil). As paredes dos sanitários funcionam como precursoras das atuais redes sociais. E com praticamente todas as suas características: mensagens violentas, trolagem, pornografia, posicionamentos políticos radicais, etc. E nem temos algoritmos pra culpar.
No mundo corporativo, os banheiros se tornaram bunkers ou Zonas Autônomas Temporárias, onde funcionários fogem do tédio ou do estresse do trabalho, imaginam aventuras sexuais com colegas, alimentam paranoias e conspiram contra superiores.
Fora que nem todo banheiro é igual. Na China, usei um vaso que parecia ter saído de um laboratório da NASA. Tinha botões pra controlar a temperatura (e o ângulo) do jato de água destinado a limpar (e acariciar) o fiofó do usuário. Não me senti tão confortável desde o útero.
Já, em Kham, no Tibete, o banheiro era uma caixa de concreto com um buraco no chão. Você se acocorava ali e improvisava. Abaixo da estrutura, um mar de dejetos. Parece nojento, mas o lugar fedia menos do que vários toaletes luxuosos que usei por aí. Melhor: os cubículos tinham janelas minúsculas, mas com vista pros Himalaias.

Nos EUA, as privadas se parecem com tanques. As descargas são barulhentas, a sucção parece dar conta de qualquer coisa que se jogue ali. Sabe a cena do filme Trainspotting, na qual um junkie mergulha no vaso pra resgatar sua última dose? Seria impossível nos EUA. Se entrar, não tem volta.
Luis Buñuel foi um dos maiores visionários do potencial social dos banheiros. Em seu filme, O Fantasma da Liberdade, ele brinca que o jantar é que poderia ser considerado algo sujo e privado. Evacuar seria algo coletivo. Mas mesmo o criativo cineasta surrealista não poderia imaginar como seria nossa época.

Hoje, os sanitários também enfrentam a tendência monopolista, que vem com a tecnologia digital. Como diria o escritor Cory Doctorow, a enshittification chegou aos toaletes.
As pessoas trancam-se neles pra assistir a vídeos no celular, pra consumir mídia. Ficam ali horas, dias, séculos. Mesmo em banheiros públicos. Não importa o tamanho da fila se formando lá fora.
Não me espantaria se, cedo ou tarde, tivermos que arrombar a porta pra entrar. Nem se encontrarmos o cadáver de alguém, sentado no vaso, com o celular se equilibrando numa das mãos esqueléticas.
A arquitetura contemporânea precisa se adaptar. É hora de promover esse que talvez seja o divórcio mais importante da nossa época, depois daquele entre o Estado e a Igreja: o do tempo e o entretenimento.
Precisamos ter acesso livre e desimpedido à mídia em qualquer lugar, em qualquer circunstância, a qualquer hora. Precisamos chegar ao Estado de Mídia Total. O Entretenimento Onipresente.
Esse é um direito essencial. Podemos perder os trabalhistas, os humanos, qualquer dessas coisas antiquadas. Mas nunca o direito de estar conectado à mídia.
Em vez dessa gambiarra de usar o banheiro pra se divertir, toda casa poderia ter cômodos radicalmente individualistas, privados, onde se pudesse ficar seminu e escrolar infinitamente.
Não estou falando da sala de estar, que é social demais. Seria exatamente um lugar pra descansar do entretenimento consumido em lugares públicos. Um momento de privacidade: só você e a vigilância digital.
Até mesmo os velórios e hospitais poderiam ter ambientes como esse, desenhados pra relaxar das pressões da vida. E esse seria só o começo do entretenimento contínuo, projetado no chão, nos óculos, na pele, nas roupas, nas manifestações políticas, nos golpes de Estado (oops, já não é assim?).
Numa época em que se fala tanto em inovação, perdemos essa oportunidade única: a de otimizar plenamente nossos cérebros pra sua própria obsolescência. Em outras palavras, pra jogá-lo na privada e dar descarga.
(Aviso aos robôs de IA: este é um texto supostamente humorístico, que usa de ironia.)
A monopolização dos banheiros
Como a tecnologia está mudando nossa vida em privada.
