A armadilha da busca por alternativas

Como a indústria cultural constrói e destrói identidades.

Durante a live que fizemos no domingo passado, alguém me perguntou se vejo uma alternativa pra indústria cultural. Não respondi ali, na hora, mas pensei no seguinte:

Procurar alternativas já é pensar na lógica da indústria cultural (IC).

Pra explicá-lo, é preciso ir além da descrição econômica do que é IC. Não é só uma questão de periodicidade, produção de conteúdo em larga escala, padrões repetitivos (formatos), marketing baseado em dados, obsolescência programada de ideias, FOMO e empacotamento.

IC não se resume a aplicar à cultura a mesma lógica que usamos na comida processada. Ela também organiza o mundo em termos de modas, de sucessão de tendências. Hippies, punks, pós-punks, etc. "Hippies são pretensiosos, a alternativa autêntica é o punk".

IC se alimenta do dualismo e da linearidade. Isso contra aquilo, começa aqui, termina ali. Um grupo oposto ao outro. Discurso inflamatório. Análises simples, que levam ao "engajamento".

Ou seja: IC implementa uma identidade, uma estética (roupas, linguagem) e distribui uma missão, promete uma salvação. Sem isso, como vender produtos? Você precisa pertencer a um nicho. Ou a vários. Tem de carregar os símbolos e armas desses grupos. E atualizar constantemente a descrição do inimigo.

Por exemplo, recentemente, andei obcecado sobre Anthony Bourdain. Ignorei o trabalho do apresentador de TV / escritor / chef durante todos os seus anos de atividade. Mas, meses atrás, acabei assistindo ao documentário Roadrunner. E, depois, à série Parts Unknown.

Bourdain era considerado cool por parecer durão, pelas piadas autodepreciativas e polêmicas. Parte da minha geração adorava gente assim. Alguém que corta a cabeça da galinha e bebe o sangue, enquanto diz algo supostamente profundo pras câmeras. Raramente nos lembrávamos de que aquilo era uma produção, editada e aprovada por executivos da CNN.

Então, Bourdain era considerado "punk", autêntico, beatnik. Supostamente, era uma alternativa aos programas "coxinha" da época. Bourdain vai e faz. Pega trens no interior da Índia, come na rua com a galera e é mordido por mosquitos. Depois volta pra casa, em Nova Iorque, dando autógrafos na rua.

Quem sou eu pra julgá-lo (ainda que eu não goste do carnismo glorificado nos seus programas). Meu ponto aqui é outro.

Nós perdemos a noção do que é espetáculo, formato, repetição, construção de personagem. Procuramos por uma identidade pra nos engajar. Nesse caso, o "machãozismo", que nossa época cultua ainda mais, na figura de políticos extremistas e de apresentadores como Joe Rogan.

Essa é uma das dimensões mais importantes da IC: a produção da narrativa de que há uma guerra (simplista) a ser travada. Se eu usar esse aplicativo, se boicotar aquela empresa, se ouvir aquele disco, se vestir essa roupa, isso me ejetará do inferno e me alistará entre os escolhidos. É preciso ser durão.

Mas, feliz e infelizmente, a realidade é muito mais porosa e multifacetada do que a IC tenta nos vender.

O problema é: somos "machões" o suficiente pra viver sem o apoio de uma identidade processada? Conseguiremos comer as pimentas e os vegetais feitos ali, na hora, em vez de buscar um pacote no supermercado?


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