Quando o trabalho vira um encosto

Por que transformamos tudo (até mesmo o prazer) em trabalho?

Quando o trabalho vira um encosto
Quem você vai chamar quando o trabalho vira um fantasma?

Geralmente, quando pensamos em trabalho, nos referimos a uma atividade: fazer alguma coisa, repetidamente, em troca de dinheiro (ou algo assim). Mas eu ando pensando que trabalho está mais pra uma espécie de fantasma. Um encosto, talvez.

É que trabalho é um estado mental que nos possui. Estamos ali, transando, meditando, nos divertindo, relaxando e, de repente, transformamos tudo em trabalho.

Esse encosto tira a espontaneidade, a leveza, a brincadeira das nossas tarefas. Associamos a elas objetivos, metas, ansiedade, cobrança e autocobrança. Assim, perdemos o entusiasmo e o engajamento. Mecanizamos a coisa toda.

É espantoso que isso aconteça até com a meditação. De repente, você se pega ticando práticas, cumprindo horários, batendo cartão. Ou tentando acumular títulos, ganhar um salário espiritual, subir na carreira de yogue. Você separa tempo e dinheiro pra visitar um centro de meditação, mas acaba (psicologicamente) indo parar no The Office.

O que evoca o encosto do trabalho é a repetição. Prática pode trazer perfeição, mas também possessão. Depende da atitude.

O que me lembra de uma antiga história indiana. Um criminoso recebe a pior das condenações possíveis: repetir incessantemente sua atividade favorita. Aos poucos, ela se torna tédio e, depois… trabalho.

Entendo que, talvez, algumas pessoas tirem (apenas) prazer do trabalho. Pra elas, minha conversa aqui pode parecer um tanto exagerada.

Mas imagino que esse prazer venha justamente de uma narrativa externa, que justifica o cotidiano: “gosto do meu emprego porque estou ajudando a melhorar o mundo”. Ou alguma mutreta intelectual, tipo “estou galgando o pódio da meritocracia”.

Quantas vezes somos capazes de ficar ali, pelados e desinibidos, em frente de uma simples atividade? Sempre precisamos de alguma armadura pra enfrentar o medo da repetição e do cotidiano.

Ainda assim, é certo que, às vezes, uma armadurazinha ajuda. No caso, olhar as tarefas a partir de um ponto-de-vista menos restrito, sair da sua própria bolha.

O verdadeiro sofrimento que o encosto do trabalho traz é a constante narrativa pesada, negativa e claustrofóbica. Isso aparece como olhar a grama do vizinho, se preocupar (desnecessariamente) com desempenho, buscar compulsivamente por aceitação, regurgitar o quanto uma tarefa é tediosa. E por aí vai.

Esse estado mental nos impede de nos apaixonarmos pela mecânica das tarefas. O Demônio do Trabalho toma nossos corpos e não nos deixa ter prazer. Ou, pelo menos, relaxar.

A boa notícia é que, muitas vezes, o encosto não aparece pra trabalhar. Aliás, ele é um funcionário bem relapso.

Por exemplo, outro dia estava trabalhando com demolição. Com um martelo na mão (que eu chamava de One Divine Hammer), eu me sentia num desses programas de remodelamento de casas, da TV a cabo.

No meio da pancadaria, quebrando madeiras, usando power tools etc., percebi que estava me divertindo. Ajuda o fato de que não faço isso diariamente. Mas, dane-se, o encosto estava de férias.

Eu é que não vou continuar a evocá-lo voluntariamente. Mas também não adianta tentar exorcismo. Isso também se tornaria um trabalho. Melhor cortar a narrativa negativa, lembrar dos dias em que o encosto não está lá.

Afinal, quando estamos fugindo de fantasmas, a única coisa que conseguimos enxergar é pânico.