Bullshit Jobs e Bullshit Fun

A IA vai acabar com o trabalho ou criar mais empregos inúteis?

Bullshit Jobs e Bullshit Fun
O antropólogo David Graeber.

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Toda vez que ouço debates sobre como a IA vai influenciar o futuro do trabalho, me pergunto: ninguém aí leu Bulshit Jobs, do antropólogo David Graeber?

O livro é uma descrição clara (e engraçada) sobre como o trabalho é muito mais uma questão de identidade e de política do que de eficiência econômica.

Graeber argumenta que, ao longo do século 20, foram criadas inúmeras profissões cujo objetivo é, apenas, manter pessoas empregadas. São trabalhos “inúteis”, do ponto de vista da produtividade. E psicologicamente frustrantes, já que o profissional não vê significado em suas atividades cotidianas – quando têm uma.

Graeber categoriza essas profissões em 5 tipos:

  1. Puxa-sacos: Existem pra fazer alguém se sentir ou parecer importante. Não colaboram pro produto final da organização.
  2. Capangas: Requerem fazer coisas desagradáveis ​​em nome da empresa, geralmente violando a ética pessoal do empregado.
  3. Remendadores: Servem pra corrigir ou mascarar problemas que surgem das falhas do sistema ou da gestão da empresa.
  4. Ticadoeres de itens: Consistem em preencher formulários e documentos burocráticos, sem necessidade ou razão.
  5. Vigias: Supervisionar ou gerenciar outros “empregos de merda”, sem contribuir significativamente pro produto final da organização.

O livro é cheio de exemplos e depoimentos. Cedo ou tarde, você acaba se identificando com algum deles. Eu mesmo conheço uma pessoa que foi, literalmente, impedida de trabalhar pela gerência. A única coisa que precisava fazer era aparecer no escritório, das 9 às 18h. Por mais de 10 anos.

Mas a questão aqui é IA, certo?

Alguns analistas acreditam que, em breve, essa tecnologia acabará com muitos empregos. A solução seria implementar alguma forma de renda básica universal.

Interessante. Mas essa é uma lógica derivada da visão produtivista do trabalho. Ou seja, de considerar que trabalhamos apenas pra atingir fins econômicos.

Mas o que acontece quando adotamos a visão política / atropológica de Graeber? Deduzimos que o sucesso da IA pode ajudar a criar uma proliferação ainda maior de “bulshit jobs”.

Na verdade, o cenário pode ser ainda mais caótico e dinâmico:

  • Delegaremos “bulshit jobs” pra IA e subiremos pra um nível “meta”, gerenciar e checar a IA.
  • Em poucos anos (ou meses), essas posições, também, se tornarão obsoletas.
  • Então, os humanos subirão mais um degrau na escala da abstração (ou correrão mais uns kilômetros na “esteira meta”).

Por outro lado, há também a possibilidade de um processo contrário: surgirem mais trabalhos físicos.

Afinal, a IA enfrenta um problema sério: ainda não existe energia suficiente disponível no planeta pra manter esses sistemas famintos.

A conversa no Vale do Silício é que será necessário criar várias indústrias de energia nuclear. Assim, aparentemente, a construção civil e manutenção serão cada vez mais importantes. Sem falar em mineração, limpeza e segurança.

O sonho da superação do trabalho é tão antigo quanto a crença de que trabalho é aquilo que dá sentido pra vida.

Acho mais fácil transformarmos a diversão em trabalho (que é um processo já em andamento) do que o trabalho em diversão.

Enfim, se há “bullshit jobs” também existe a “bullshit fun”. E a IA já está influenciando os dois cenários.

É bem possível que venhamos a nos voluntariar pra trabalhos inúteis, só pra escapar do suposto vazio da ausência de uma identidade profissional.